Autor: Pierre Lévy
CAPÍTULO 1 - A METÁFORA DO HIPERTEXTO
1. IMAGENS DO SENTIDO
PRODUZlR O CONTEXTO
Seria a transmissão de informações a primeira função da comunicação? De certo que sim, mas em um nível mais fundamental o ato de comunicação define a situação que vai dar sentido às mensagens trocadas. A circulação de informações é, muitas vezes, apenas um pretexto para a confirmação recíproca do estado de uma relação. Quando, por exemplo, conversamos sobre o tempo com um comerciante de nosso bairro, não aprendemos absolutamente nada de novo sobre a chuva ou o sol, mas confirmamos um ao outro que mantemos boas relações, e que ao mesmo tempo nossa intimidade não ultrapassou um certo grau, já que falamos de assuntos anódinos, etc. Não é apenas quando declaramos que "a sessão está aberta", ou em certas ocasiões excepcionais, que agimos ao falar. Através de seus atos, seu comportamento, suas palavras, cada pessoa que participa de uma situação estabiliza ou reorienta a representação que dela fazemos outros protagonistas. Sob este aspecto, ação e comunicação são quase sinônimos. A comunicação só se distingue da ação em geral porque visa mais diretamente ao plano das representações. Na abordagem clássica dos fenômenos de comunicação, os interlocutores fazem intervir o contexto para interpretar as mensagens que lhes são dirigidas. Após vários trabalhos em pragmática e em microsociologia da comunicação, propomos aqui uma inversão da problemática habitual: longe de ser apenas um auxiliar útil à compreensão das mensagens, o contexto é o próprio alvo dos atos de comunicação. Em uma partida de xadrez, cada novo lance ilumina com uma luz nova o passado da partida e reorganiza seus futuros possíveis; da mesma forma, em uma situação de comunicação, cada nova mensagem recoloca em jogo o contexto e seu sentido. A situação sobre o tabuleiro de xadrez em determinado momento certamente permite compreender um lance, mas a abordagem complementar segundo a qual a sucessão dos lances constrói pouco a pouco a partida talvez traduza ainda melhor o espírito do jogo. O jogo da comunicação consiste em, através de mensagens, precisar, ajustar, transformar o contexto compartilhado pelos parceiros. Ao dizer que o sentido de uma mensagem é uma "função" do contexto, não se define nada, já que o contexto, longe de ser um dado estável, é algo que está em jogo, um objeto perpetuamente reconstruído e negociado. Palavras, frases, letras, sinais ou caretas interpretam, cada um à sua maneira, a rede das mensagens anteriores e tentam influir sobre ó significado das mensagens futuras. O sentido emerge e se, constrói no contexto, é sempre local, datado, transitório. A cada instante, um novo comentário, uma nova interpretação, um novo desenvolvimento podem modificar o sentido que havíamos dado a uma proposição ( por exemplo) quando ela foi emitida... Se estas idéias são de alguma forma válidas, as modelizações sistêmicas e cibernéticas da comunicação em uma organização são no mínimo insuficientes. Elas consistem quase sempre em designar um certo número de agentes de emissão e recepção, e depois em traçar o percurso defluxos informacionais, com tantos anéis de retroação quanto se desejar. Os diagramas sistêmicos reduzem a informação a um dado inerte e descrevem a comunicação como um processo unidimensional de transporte e decodificação. Entretanto, as mensagens e seus significados se alteram ão deslocarem-se de um ator a outro na rede, e de um momento a outro do processo de comunicação. O diagrama dos fluxos de informação é apenas a imagem congelada de uma configuração de comunicação em determinado instante, sendo geralmente uma interpretação particular desta configuração, um "lance" no jogo da comunicação. Ora, a situação deriva perpetuamente sob o efeito das mudanças no ambiente e de um processo ininterrupto de interpretação coletiva das mudanças em questão. Identidade, composição e objetivos das organizações são portanto periodicamente redefinidos, o que implica uma revisão dos captadores e das informações pertinentes que eles devem recolher, assim como dos mecanismos de regulagem que orientam as diferentes partes da organização rumo a seus objetivos. É nesta metamorfose paralela da organização e de seu ambiente que se baseia o poder instituinte da comunicação; vemos que ela está mal representada pelos diagramas funcionais dos fluxos de informação. Porque transformam os ritmos e as modalidades da comunicação, as mutações das técnicas de transmissão e de tratamento das mensagens contribuem para redefinir as organizações. São lances decisivos, "metalances", se podemos falar assim, no joga da interpretação e da construção da realidade.
CLARÕES
Os atores da comunicação produzem portanto continuamente o universo de sentido que os une ou que os separa. Ora, a mesma operação de construção do contexto se repete na escala de uma micropolítica interna às mensagens. Desta vez, os jogadores não são mais pessoas, mas sim elementos de representação. Se o assunto em questão é, por exemplo, comunicação verbal, a interação das palavras constrói redes de significação transitórias na mente de um ouvinte. Quando ouço uma palavra, isto ativa imediatamente em minha mente uma rede de outras
palavras, de conceitos, de modelos, mas também de imagens, sons, odores, sensações proprioceptivas, lembranças, afetos, etc. Por exemplo, a palavra " maçã " remete aos conceitos de
fruta de árvore, de reprodução; faz surgir o modelo mental de um objeto basicamente esférico, com
um cabo saindo de uma cavidade, recoberto por uma pele de cor variável, contende uma polpa
comestível e caroços, ficando reduzido a um talo quando o comemos; evoca também o gosto e a
consistência dos diversos tipos de maçã, a granny mais ácida, a golden muitas vezes farinhenta, a
melrose deliciosamente perfumada; traz de volta memórias de bosques normandos de macieiras, de
tortas de maçã, etc. A palavra maçã está no centra de toda esta rede de imagens e conceitos que, de
associação em associação, pode estender-se a toda nossa memória. Mas apenas os nós selecionados
pelo contexto serão ativados com força suficiente para emergir em nossa consciência.Selecionados pelo contexto, o que isto quer dizer? Tomemos a frase: "Isabela come uma maçã por suas vitaminas. " Como a palavra "maçã", as palavras "come" e "vitaminas" ativam redes de conceitos, de modelos, de sensações, de lembranças, etc. Serão finalmente selecionados os nós da minirrede, centrada sobre a maçã, que outras palavras da frase tiverem ativado ao mesmo tempo; neste caso: as imagens e os conceitos ligados à comida e à dietética. Se fosse "a maçã da discórdia"ou a "maçã de Newton", as imagens e os modelos mentais associados à palavra " maçã " seriam diferentes. O contexto designa portanto a configuração de ativação de uma grande rede semântica em um dado momento. Reiteremos aqui a conversão do olhar já tentada para a abordagem macroscópica da comunicação: podemos certamente afirmar que o contexto serve para determinar o sentido de uma palavra; é ainda mais judicioso considerar que cada palavra contribui para produzir o contexto, ou seja, uma configuração semântica reticular que, quando nos concentramos meta, se mostra composta de imagens, de modelos, de lembranças, de sensações, de conceitos e de pedaços de discurso. Tomando os termos leitor e texto no sentido mais amplo possível, diremos que o objetivo de toda texto é o de provocar em seu leitor um certo estado de excitação da grande rede
heterogênea de sua memória, ou então orientar sua atenção para uma certa zona de seu mundo interior, ou ainda disparar a projeção de um espetáculo multimídia na tela de sua imaginação.
_________
Pág.: 15
Não somente cada palavra transforma, pela ativação que propaga ao longo de certas vias, o estado de excitação da rede semântica, mas também contribui para construir ou remodelar a própria topologia da rede ou a composição de seus nós. Quando ouvi Isabela declarar, ao abrir uma caixa de
raviólis, que não se preocupava com dietética, eu havia construído uma certa imagem de sua relação com a comida. Mas ao descobrir que ela comia uma maçã " por suas vitaminas", sou obrigado a reorganizar uma parte da rede semântica a ela relacionada. Em termos gerais, cada vez que um caminho de ativação é percorrido, algumas conexões são reforçadas, ao passo que outras caem aos
poucos em desuso. A imensa rede associativa que constitui nosso universo mental encontra-se em metamorfose permanente. As reorganizações podem ser temporárias e superficiais quando, por exemplo, desviamos momentaneamente o núcleo de nossa atenção para n audição de um discurso,
ou profundas e permanentes como nos casos em que dizemos que "a vida "Ou "uma longa experiência" nos ensinaram alguma coisa. O sentido de uma palavra não é outro senão a guirlanda cintilante de conceitos e imagens que brilham por um instante ao seu redor. A reminiscência desta claridade semântica orientará a extensão do grafo luminoso. disparado pela palavra seguinte, e assim por diante, até que uma forma particular, uma imagem global, brilhe por um instante na noite dos sentidos. Ela transformará, talvez imperceptivelmente, o mapa do céu, e depois desaparecerá para abrir espaço para entras constelações.
SEIS CARACTERÍSTICAS DO HIPERTEXTO
Cada um em sua escala, os atores da comunicação ou os elementos de uma mensagem constroem e remodelam universos de sentido. Inspirando-nos em cortas programas contemporâneos, que descreveremos abundantemente na continuação desta seção, chamaremos estes mundos de significação de hipertextos.
Como veremos, na estrutura do hipertexto não dá conta somente da comunicação. Os processos sociotécnicos, sobretudo, também têm uma forma hipertextual, assim como vários outros fenômenos. O hipertexto é talvez uma metáfora válida para todas as esferas da realidade em que significações estejam em jogo. A fim de preservar as possibilidades de múltiplas interpretações do modelo do hipertexto, propomos caracterizá-lo através de seis princípios abstratos.
l. Principio de metamorfose
A rede hipertextual está em constante construção e renegociação. Ela pude permanecer estável durante um certa tempo, mas esta estabilidade é em si mesma fruto de um trabalho. Sua
extensão, sua composição e seu desenho estão permanentemente em jogo para os atores envolvidos,
sejam eles humanos, palavras, imagens, traços de imagens ou de contexto, objetos técnicos,
componentes destes objetos, etc.
2. Princípio de heterogeneidade
Os nós e as conexões de uma rede hipertextual são heterogêneos. Na memória serão encontradas imagens, sons, palavras, diversas sensações, modelos, etc., e as conexões serão lógicas, afetivas, etc. Na comunicação, as mensagens serão multimídias, multimodais; analógicas, digitais, etc. O processo sociotécnico colocará em jogo pessoas, grupos, artefatos, forças naturais de todos os tamanhos, com todos os tipos de associações que pudermos imaginar entre estes elementos.
3. Princípio de multiplicidade e de encaixe das escalas
_________Pág.: 16
O hipertexto se organiza em um modo "fractal", ou seja, qualquer nó ou conexão, quando analisado, pode revelar-se como sendo composto por toda uma rede, e assim por diante, indefinidamente, ao longa da escala dos graus de precisão. Em algumas circunstâncias críticas, há efeitos que podem propagar-se de uma escala a outra: a interpretação de uma vírgula em um texto (elemento de uma microrrede de documentos), caso se trate de um tratado internacional, pode repercutir na vida de milhões de pessoas (na escala da macrorrede social).
4. Princípio de exterioridade
A rede não possui unidade orgânica, nem matar interno. Seu crescimento e sua diminuição, sua composição e sua recomposição permanente dependem de um exterior indeterminado: adição de novos elementos, conexões com outras redes, excitação de elementos terminais (captadores), etc. Por exemplo, para a rede semântica de uma pessoa escutando um discurso, a dinâmica dos estados
de ativação resulta de uma fonte externa de palavras e imagens. Na constituição da rede sociotécnica intervêm o tempo toda elementos novos que não lhe pertenciam no instante anterior: elétrons, micróbios, raios X, macromoléculas, etc.
5. Princípio de topologia

Nos hipertextos, tudo funciona por proximidade, por vizinhança. Neles, o curso dos acontecimentos é uma questão de topologia, de caminhas. Não há espaço universal homogêneo onde haja forças de ligação e separação, onde as mensagens poderiam circular livremente. Tudo que se desloca deve utilizar-se da rede hipertextual tal como ela se encontra, ou então será obrigado a modificá-la. A rede não está no espaço, ela é o espaço.
6. Princípio de mobilidade dos centros.
A rede não tem centra, ou melhor, possui permanentemente diversos centros que são como pontas luminosas perpetuamente móveis, saltando de um nó a outro, trazendo ao redor de si uma ramificação infinita de pequenas raízes, de rizomas, finas linhas brancas esboçando por um instante um mapa qualquer com detalhes delicados, e depois correndo para desenhar mais à frente outras paisagens do sentido.
BIBLIOGRAFIA
ANDERSON John R., Cognitive Psychology and its Implications (2ª edição), W.H. Freeman and Company, New York, 1985. BADDELY Alan, Your memory: a User’s guide, Mc-graw Hill, Toronto, 1982. COULON Alain, L’Ethnométhodologie, PUF, Paris, 1987.DELEUZE Gilles, GUATARRI Félix, Mille Plateux. Capitalism et schizophrénie, Minuit, Paris, 1980 GARFINKEL Harold, Studies in Ethnomethodology, Prentice Hall, Engelwood Cliffs, New Jersey, 1967. JOHNSON-LAIRD Philip N., Mental Models, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1983.
QUERE Louis, Des mirois équivoques, Aubier Montaigne, Paris, 1982. STILLINGS Neil et al., Cognitibve Science. An Introduction, MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 1987.
WINKIN Yves (textos organizados e apresentados por), La Nouvelle Communication, Le Seuil, Paris, 1981.